Correios #9.


Do Outro Lado da Ilha de Cipango, Sempre.



Amor, amor,

Sabe porque não me atrevo a te escrever mais cartas? Porque pra dizer o que eu sinto, eu terei que inventar novas vogais. Não, não é conversa fiada, é pura impotência diante de uma semântica tão foleira. Te conto que quando tinha sete ou oito anos, me pus a escrever minha primeira carta, foi pra tia Marlene, lembra dela? A que mora em Ribeirão. E quando fui acabar me enganchei e: ‘Mãe, como se escreve um beijo? Bê-É-I-Jí e Ó’, lembro que foi assim que ela me respondeu. Mas eu queria era escrever um beijo pipocado, estalado, barulhento e perguntei de novo: Não, como se escreve - fiz um bico espremido, suguei o ar até fazer cócegas nos lábios e doer lá atrás na língua - ? ‘Ah, isso não se escreve’, respondeu minha mãe. Como era possível? A língua portuguesa se gaba de ser a única que suporta o peso da saudade, e não sabe escrever um beijo?! ‘E em inglês, como é?’, insisti. Algum idioma deveria ter a receita. Si-Mê-Á-Cê-Cá. Escrevi. Mas não batia certo. SMACK não é o mesmo que o som de bico espremido sugando o ar até fazer cócegas nos lábios e doer lá atrás na língua. Naquele dia nasceu em mim uma tristeza. Era uma certeza de ter dizeres a mais pra pouca escritura. A nossa língua, a de músculo, bem que se dobra o suficiente pro que a gente quer expressar. Bem que a face toda se contrai, o diafragma. A gente é até capaz de ficar em bicos de pés pra conseguir dizer mais. A gente sobe na mesa, abre os braços, cerra os punhos, enruga o nariz, enche o queixo de furinhos, fica vermelho e sua e ainda assim nos falta um jeito de colocar isso tudo no papel, na pedra, nos troncos das árvores, nos banheiros públicos. É por isso que eu falo, entenda, é por isso que eu falo que pra escrever o que sinto terei que inventar novas vogais. E também pontuações mais autênticas que saibam revelar as diferenças de entoação, como numa partitura. Nossa semântica carece de oitavas abaixo e acima e bemóis e sustenidos e... entende?  Não é por preguiça de pôr no correio.  Está bem, admito que a preguiça de pôr no correio é fator agravante.  Mas como eu posso exprimir todo o meu amor por você se quando mando um beijo lê-se o mesmo beijo que mando a minha tia Marlene e aos meus sobrinhos e  aos meus pais que, meu Deus, eu os quero tanto bem, mas não, nunca daria neles os mesmos beijos que dou em você? E a exclamação que uso para escrever ‘olá, bom dia!’ é riscada da mesma maneira que quando digo ‘Amor, amor, eu te desejo tanto!’ Esta que devia ser escrita como um falo pingando gozo de tanta loucura. Escrever o que se sente é uma injustiça à qual amante nenhum deveria estar exposto. Porque é sempre maior o sentimento e a falta de precisão abre gretas de dúvidas no peito de quem lê. Amor, amor, esta será a minha última carta de amor pra você. Ao menos até eu saber como pontuar minha paixão, até eu saber como escrever o som de uma boca entreaberta, macia, úmida, quente, ofegante, inflamada da lascívia de sentir sua barba roçando o bordo dos meus lábios e nossas línguas se enroscando, suaves, completas, como duas minhocas se refastelando de amor sob a terra molhada de chuva.
                       
                                                                                                                        Para sempre tua.

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