Correios #10.


Mãe,
Está chovendo. Mas acho que já estava pensando em você antes. Tenho a impressão de ter estado  todo o dia querendo passar a tarde contigo, tomando café e comendo biscoito na gordura. Estou mesmo quase convencida de que já acordei com essa ideia na cabeça, e que esse sentimento de sono despertado no susto me acompanhou depois de ter lavado o rosto, escovado os dentes, apanhado o ônibus, engolido a saliva mil vezes. Se o céu estivesse azul eu saberia  dizer com certeza tudo o que desejei e pensei hoje. Mas chove. O que ouço é a voz de tia Lica dizendo pra gente espalhar panelas e bacias pela sala de jantar, porque pinga, e não devemos esquecer de colocar uma também em cima da minha cama e ela mesma corre pra recolher a roupa no varal. Olho pela porta do quintal, e minha avó tira a tampa do tonel que fica bem embaixo da bica. ‘Água de chuva é pura e sagrada’ ─ naquele tempo, note que estamos agora naquele tempo ─  ela repete isso muitas vezes na esperança de que você acredite e nos deixe beber. Eu bebo. Acredito que me dá super-poderes, como acontece quando encaro os gatos firmemente. As minhas pupilas se estreitam como as seis horas num relógio de ponteiros. Fico capaz de vencer os grandes inimigos que tenho. Os da escola são chatos, prefiro combater os inimigos da humanidade como o Lex Luthor, o Pingüim, o Gargamel. Talvez seja injusto eu lutar com eles tendo tantos super-poderes, mas a vida não é justa. Nos dias de sol, o bem e o mal são muito fáceis de definir. Mas chove. Rosa bota um pano de chão na porta que dá pro quintal, tio Nelson chega sacudindo o grande guarda-chuva preto e despejando sobre a mesa o conteúdo do saco de papel que acaba de trazer da padaria. São paciências. Ele adora paciências. Eu gosto de imaginar o barulho que fazem quando são feitas, quando a mulher ─ deve ser uma mulher ─ derrama devagar os tantinhos de massa sobre o tacho quente. Shhhhhhhhh. Imagino que soe assim. Você está trabalhando. Meu pai está viajando. A chuva na rua de terra batida corre linda. É maior que o Rio Pardo. A cidade não tem rio, e é preciso aproveitar esses momentos de rios que acometem a nossa rua. ‘A água da chuva é pura e sagrada’. Nunca duvidei. Eu, Teo e Vera pulamos pra dentro da enxurrada. Às vezes, as poças são maiores do que nós. Diziam que íamos apanhar lombriga, mas nunca aconteceu. Ameba não conta. Não tira a sandália pra me bater, mãe. Lembra dos seus cinco anos, aquela tempestade que te apanhou sozinha no fim da tarde. Os dias de chuva são sorrateiros, nos armadilham. É preciso nos unir, mãe. Vem cá, mãe. Canta comigo umas cantigas de roda, vamos ter cinco anos juntas. Vamos as duas tomar banho na enxurrada, deixar que ela nos leve os sapatos, vamos arriscar umas lombrigas, umas amigdalites. Ameba não conta. Depois entramos em casa, escondidas, tomamos banho quente, calçamos aquelas pantufas de pelinhos doze números acima do nosso, botamos uma xícara de café, com leite, porque café puro deixa a gente rude, adicionamos bastante açúcar, comemos biscoito na gordura e danamos a assobiar, que é pra ver se tio Nelson implica, rindo-nos à socapa. No fim de tudo, cochilamos uma no sofá e a outra na cadeira de balanço, ouvindo aquela novela que passa na rádio, as duas achando lindo o nome da personagem. Bianca. Olha que se fôssemos irmãs, mãe, não seríamos tão parecidas. 


Ps: Como chove, não sei dizer onde nem quando esta carta foi escrita.
Outro Ps: Não escrevi 'Um beijo' no fim. Esta carta é um beijo. 

Um comentário:

Dude Santos disse...

Leitura obrigatória. Engraçado que é o tipo de literatura em 3D: fala de água fora, mas faz chover dentro. Lindo texto.